Um Voto de Fé
Imagem: Regina de Sá
Mãos, pernas e cabeças, moldados em cera, pendem do teto da sala dos milagres. Fotos emolduram as paredes. Um carro novo, a casa própria, a cura de uma doença. Quem mensura o que é milagre? Entre prece, alegria e cura, transitam os fiéis. Um deles conta da filha, que intercedeu por ele. “Estou praticamente curado”. Quase tudo que se vê, lê ou se toca naquele espaço da Igreja do Bonfim é um ex-voto, prática devocional difundida e aceita como manifestação religiosa católica. Um pedido feito, uma promessa a ser cumprida e, se a graça for alcançada, será paga com o depósito de um objeto em lugar sagrado.
Construção em estilo barroco rococó inaugurada em 1754, o templo do Bonfim é o destino final da peregrinação de ex-votistas de todo o País. A igreja, erguida no alto de uma colina, na Península de Itapagipe, é um ex-voto, pois conta a história que, em agradecimento, um devoto do Senhor do Bonfim de Setúbal, Portugal (foi de lá que veio a réplica da imagem), o capitão-de-mar-e-guerra português Teodósio Rodrigues de Faria, prometeu que, se conseguisse escapar de uma tormenta em alto-mar, abrigaria, em solo baiano, as imagens que trazia na caravela: Nosso Senhor do Bonfim e Nossa Senhora da Guia.
Abraçado a um exemplar de Riscadores de Milagres, do historiador e crítico de arte Clarival do Prado Valladares, Luiz Geraldo Freire de Carvalho, 71, responsável pelo museu dos ex-votos do Bonfim, sobe cuidadosamente os estreitos degraus que dão acesso ao lugar e vai contando curiosidades sobre as mais antigas representações ex-votivas que estão nas paredes, muitas delas citadas no livro. Carvalho, que há 26 anos trabalha na Devoção do Bonfim, conhece muitas histórias dos objetos que compõem o acervo.
São mais de mil peças em prata, ouro e bronze, algumas em formato de pingente. Antigamente, explica Carvalho, pessoas com maior poder aquisitivo mandavam um ourives confeccionar os ex-votos, que eram chamados então de milagritos. Mas há também objetos bastante curiosos, como camisas de clube de futebol entregues por jogadores, um sabre, uma bomba da Segunda Guerra Mundial, algemas, casinhas feitas em madeira, quadros relatando naufrágios e curas, jogos de chá, relógios, terços em ouro e prata, placas, mechas de cabelo, alianças, retratos, telefones, réplicas de embarcações e uniformes de oficiais.
Na coleção do museu do Bonfim, destacam-se ainda os ex-votos de madeira. Dentre as muitas peças, uma chama especialmente a atenção. A escultura mede apenas 50 cm, feita de cedro, é atribuída a um artista, Manoel Bonfim, e se encontra ao lado de um relógio de pêndulo com carrilhão. Conforme registra a inscrição ao lado da peça, representa o escravo Amaro.
Devoção
Reza a lenda que Amaro viveu na igreja desde muito pequeno. Em meados de 1800, foi entregue à Devoção como um ex-voto, após seu dono ter uma graça alcançada. “Naquele tempo, as pessoas que tinham escravos ofereciam à Devoção. Amaro veio para cá ainda menino. Vivia aqui como um zelador”, diz Carvalho.
Por não haver um tratamento museológico, os objetos na sala permanecem perdidos no espaço e no tempo, tanto quanto as suas histórias. Para o padre Edson Menezes, 54, pároco há quatro anos no Bonfim, o que mais o preocupa hoje é a sala dos milagres. “Acho que não atende à demanda. E, na sala dos ex-votos, deveria haver um livro para registro dos milagres. É uma pena que, nesses anos todos, não se tenham catalogadas as correspondências”.
O que começou como uma pesquisa sobre os ex-votos do Bonfim levou a uma dissertação de mestrado, ampliando o olhar para outro santuário baiano, o de Bom Jesus da Lapa. A partir daí, sair pelo Brasil documentando e fotografando outros nove santuários foi quase missão. Nos últimos 20 anos, o professor de museologia José Cláudio Alves de Oliveira, 44, doutor em comunicação e coordenador do projeto Ex-votos do Brasil, visitou santuários, igrejas, salas de milagres e museus e mapeou um material igualmente precioso: a comunidade. Assim, Oliveira e sua equipe desenvolveram o projeto Inclusão Social e Capacitação Digital (http://inclusaodigitalcnpq.wordpress.com).
A ideia de aproximar quem vive no entorno de santuários, como o Bonfim, das novas tecnologias deu certo. Cerca de 100 pessoas já estão cadastradas, e muitos sequer sabiam da existência do pequeno museu, embora comercializem fitinhas e ex-votos. “A inclusão social é uma tendência nas áreas de patrimônio cultural. Alguns estão percebendo essa democratização da comunidade e capacitando pessoas no campo da arte. Mas são poucos os museus que trabalham com a sociedade, em torno de 1%”, explica o estudioso.
Arte e ex-votos
Foi na cidade de Milagres, a 232 quilômetros de Salvador, no finalzinho dos anos de 1960, que um homem abriu a mão e desembrulhou de um lenço pequeninas joias. O artista visual Sante Scaldaferri, 84, não teve dúvidas: negociou com o sujeito a compra de uns 15 ex-votos de metal. Sante estava na cidade baiana por outro motivo: na época, participava do filme de Glauber Rocha O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro.
O interesse de Sante por ex-votos nasceu ainda na Escola de Belas Artes, quando cursou a disciplina Estudos Brasileiros. “Havia um pequeno museu com ex-votos e fiquei entusiasmado. Foi ali que me apaixonei”. Saiu pelo Brasil à procura de outras peças – as preferidas são as de madeira. Hoje, trabalha com novas tecnologias, como a infogravura, sem deixar de lado “a mão do artista”. A partir de um banco de imagens, reconstrói a arte: imprime e, sobre o papel, desenha e pinta. Assim, vai elaborando novas possibilidades. “Ex-voto de madeira é uma obra de arte popular única”, diz.
Luís Américo Bonfim, 40, coordenador-geral de pós-graduação e pesquisa da Faculdade Visconde de Cairu, também é apaixonado por ex-votos. A expressão votiva do catolicismo brasileiro foi tema de sua tese de doutorado, que mapeou 120 sítios religiosos. Se, por um lado, a pesquisa trouxe luz ao tema; por outro, observou que, em séculos de devoção, acumularam-se perdas também. E alfineta: “Quando se faz um museu de arte popular, ou se cai no pieguismo ou fica erudito demais e desinteressante”.
Em breve, a maior conquista deste pesquisador poderá ganhar contornos reais: está em estudo, atualmente, uma proposta ao Museu de Arqueologia e Etnologia da Ufba de se criar uma sala de acervo etnológico ligado aos ex-votos. “Em Salvador, existe uma dificuldade muito grande de se fazer um museu se tornar um espaço curioso. A ideia é que a gente pudesse, junto com a Escola de Belas Artes, reconstruir ali um ambiente sagrado”.
Riscadores de milagres
Vem de longe a tradição dos ex-votos. Na Idade Média, era costume encomendar uma pintura. Com o tempo, deram lugar aos riscadores de milagres, que ficavam muitas vezes próximos aos templos religiosos. Em Salvador, o mais famoso deles foi João Duarte da Silva, que viveu no começo do século 20 e tinha uma tenda no Taboão. Os riscadores desapareceram com a chegada da fotografia. A popularização das máquinas digitais sedimentou outra forma de agradecer por um milagre.
Para Rubens Ribeiro Gonçalves da Silva, 53, diretor do Instituto de Ciência da Informação da Ufba, acervos fotográficos exigem atenção especial. ”No caso dos ex-votos do Bonfim, são inúmeros os fatores de deterioração”. Quanto ao descarte, ele observa: “Já é possível criar versões de forma orientada à preservação apenas do conteúdo, caso os originais estejam ali exatamente para serem consumidos pelo tempo”. É a fé entrando na era digital. O que conta, no entanto, é a preservação da memória indo além do testemunho de fé. Maior promessa não há.
Fonte: Revista Muito (http://revistamuito.atarde.uol.com.br/?p=8002)