Bom Jesus de Matosinhos

O santuário de Bom Jesus de Matosinhos encontra-se a 83km de Belo Horizonte, MG.  À direita da igreja está a pequena sala de milagres, que abriga ex-votos do século XVIII aos dias atuais. A conservação dos ex-votos antigos é impressionante para uma sala de milagres, o que a eleva como espaço de excelente conservação para esses objetos. Os pictóricos, que são os mais antigos, estão em vitrines de mesa, fechadas e trancadas. Os demais são fixados nas paredes, e alguns colocados ao chão. A liberdade da desobriga na sala é notória. O crente pode entrar e deixar o seu objeto-testemunho para o público, sem censura da igreja.

Imagens: GREC-NPE

 

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EX-VOTO TOMBADO DA SALA DOS MILAGRES DO SANTUÁRIO DO BOM JESUS DE MATOSINHOS – Iconografia 

 

EX-VOTO TOMBADO DA SALA DOS MILAGRES DO SANTUÁRIO DO BOM JESUS DE MATOSINHOS

Ex-voto da Coleção Márcia de Moura Castro.

Segundo a Ex-Coordenadora de Projetos da Fundação Nacional Pró-Memória, Clara Alvim (2011) é sabido que o Santuário de Matosinhos, em Congonhas, Minas Gerais, Brasil, se originou de uma promessa ao Bom Jesus feita pelo minerador português Feliciano Mendes, que recebeu em 21 de junho de 1757 a permissão do bispo de Mariana para erigir ali uma ermida (pequena igreja ou capela em lugar ermo ou fora de uma povoação) e a igreja.

1- Luís Jardim (1939, p.63-102, apud CASTRO, 2012, p. 30), estudando a pintura decorativa em algumas igrejas antigas das Minas Gerais, chama a atenção “para a constância das cores primárias: laranja, amarelo, vermelho, azul, verde, (…) cores, sobretudo o vermelho e oazul, que correspondem não somente ao gosto acentuadamente popular do português como do africano e, de algum modo, do indígena”. (CASTRO, 2012, p. 30) 

2 –  A legenda se destaca pelo português arcaico, tendo como principais características a caligrafia nas suas linhas curvas e a individualidade gráfica, o que demanda, num sentido contemporâneo, um conhecimento paleográfico. A legenda representa um agradecimento pela superação da varíola, também conhecida como “bexiga”. Há algumas palavras que possuem grafias já não utilizadas no português contemporâneo, tal como a palavra “Serrugões”, que significa Cirurgiões. (ACIOLI, 1994)Todavia, quando analisamos o todo como um elemento homogêneo,tamanha é a clareza do vocabulário visual do ex-voto para os fins a que se propõe, que ele poderia ser muitas vezes anepígrafo. No entanto, é na legenda que se concretizam o nome do fiel crente e a data da ocorrência do milagre (CASTRO, 2012), um documento propriamente dito. 

3 – A personagem não tem nome, é referida como “a sogra”, os ex-votos setecentistas possuíam características específicas, parafraseando Frota (2012, p 40) ‘’[…]Rostinhos minúsculos e indiferenciados emergem dos lençóis e colchas […]’’. O Dossel azul em cima da cama proporciona um contraste com os elementos cromáticos, e as dimensões e disposição da cama no cenário demonstram técnicas de perspectiva, de luz e de sombra. Correspondente a legenda, a representação da mulher no retablo é a da enfermidade, neste caso a varíola, doença exantemática causada pelo Poxvirus variolae, teve grande importância em saúde pública entre os séculos X e XX. Durante a Idade Média, juntamente com a Peste Negra, foi responsável por várias epidemias e por milhares de mortes. Apenas em 1796 a imunização foi descoberta pelo médico inglês Edward Jenner. (FARREL 2002).

O ex-voto brasileiro setecentista contém um teor tradicional, e mostra que pelos séculos XVIII e XIX poucas pessoas escapavam de qualquer enfermidade ou perigo, a não ser por obra e graça do santo ou santa de sua particular devoção ao qual ou à qual fazia uma promessa – e o primeiro cuidado do devoto, passada a crise, era mandar pintar um pequeno quadro comemorativo. (CASTRO, 2012, p 125). Essas “tábuas ex-votivas” (tábuas votivas, milagres, promessas, graças ou retablos) fixaram a representação do devoto, enfermo no leito devido à moléstia ou acidente, com legenda no terço inferior e divindade figurada no terço superior da composição (CASTRO, 2012). A busca pela regeneração do corpo através do sobrenatural fazia parte daquele contexto.

Não podemos deixar de notar o ano e as características da mulher representada neste ex-voto do século XVIII, e a escravidão sendo abolida mais de um século depois, em 1888, com muita resistência. Os elementos dispostos nesta composição tradicional exprimem o contexto social e histórico em que o Brasil passava, principalmente no que diz respeito ao racismo, cujas marcas estruturais atingem ainda a contemporaneidade. Este retablo é um documento expresso pela cultura popular, que traz a linguagem, o mobiliário, a indumentária e até histórico de doenças que assolaram o Brasil colônia, o que marca a memória de uma época e a tradição ex-votiva advinda do mundo ibérico, num rastro da memória coletiva e de uma rede Latouriana que será recorrente, seja pelo salto metrópole/colônia, seja pelos processos pictóricos que aos poucos foram se adicionando junto, também, às formas verbais aplicadas nas legendas.

CASTRO, Márcia de Moura. Ex-votos em Congonhas: o resgate de duas coleções. Brasília, DF: IPHAN, 2012. 208 p. il. (Acervos 1)

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil colônia: um guia para leitura de manuscritos. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1994

Por Sasha Morbeck Miranda – Pesquisadora Assistente IC/CNPq